Teatro na Escola
O Prato Azul Pombinho
Apresentado pela equipe escolar em 13 de abril de 2017
A história fala do último prato de porcelana
chinesa de um antigo jogo de jantar, com 92 peças, que pertencera à bisavó de
Cora Coralina.
Escreveu Cora Coralina:
"Minha bisavó - que Deus a tenha em glória - sempre
contava e recontava em sentidas recordações de outros tempos a
estória de saudade daquele prato azul-pombinho.
Era uma estória minuciosa. Comprida, detalhada. Sentimental. Puxada
em suspiros saudosistas e ais presentes. E terminava,
invariavelmente, depois do caso esmiuçado: “- Nem gosto de lembrar
disso...” É que a estória se prendia aos tempos idos em que vivia minha
bisavó que fizera deles seu presente e seu futuro.
Voltando ao prato azul-pombinho que conheci quando menina e que
deixou em mim lembrança imperecível. Era um prato sozinho, último remanescente,
sobrevivente, sobra mesmo, de uma coleção, de um aparelho antigo de 92 peças. Isto
contava com emoção, minha bisavó, que Deus haja.
Era um prato original, muito grande, fora de tamanho, um tanto oval. Prato de centro, de antigas mesas senhoriais de família numerosa. De fastos de casamento e dias de batizado. Pesado. Com duas asas por onde segurar. Prato de bom-bocado e de mães-bentas. De fios-de-ovos. De receita
dobrada de grandes pudins, recendendo a cravo, nadando em calda.
Era, na verdade, um enlevo. Tinha seus desenhos em miniaturas
delicadas. Todo azul-forte, em fundo claro num meio-relevo. Galhadas de árvores e flores, estilizadas. Um templo enfeitado de
lanternas.
Figuras rotundas de entremez. Uma ilha. Um quiosque rendilhado. Um
braço de mar. Um pagode e um palácio chinês. Uma ponte. Um barco com sua coberta de
seda. Pombos sobrevoando.
Minha bisavó traduzia com sentimento sem igual, a lenda oriental estampada
no fundo daquele prato. Eu era toda ouvidos. Ouvia com os olhos, com
o nariz, com a boca,
com todos os sentidos, aquela estória da Princesinha Lui, lá da China
- muito longe de Goiás -
que tinha fugido do palácio, um dia, com um plebeu do seu agrado e se
refugiado num quiosque muito lindo com aquele a quem queria, enquanto
o velho mandarim - seu pai -
concertava, com outro mandarim de nobre casta, detalhes complicados e
cerimoniosos
do seu casamento com um príncipe todo-poderoso, chamado Li.
Então, o velho mandarim, que aparecia também no prato, de rabicho e
de quimono, com gestos de espavento e cercado de aparato, decretou
que os criados do palácio
incendiassem o quiosque onde se encontravam os fugitivos namorados.
E lá estavam no fundo do prato, - oh, encanto da minha meninice! - pintadinhos
de azul,
uns atrás dos outros - atravessando a ponte, com seus chapeuzinhos de
bateia
e suas japoninhas largas, cinco miniaturas de chinês. Cada qual com
sua tocha acesa - na pintura - para pôr fogo no quiosque - da
pintura.
Mas ao largo do mar alto balouçava um barco altivo com sua coberta de
prata, levando longe o casal fugitivo.
Havia, como já disse, pombos esvoaçando. E um deles levava, numa
argolinha do pé,
mensagem da boa ama, dando aviso a sua princesa e dama, da vingança
do velho mandarim.
Os namorados então, na calada da noite, passaram sorrateiros para o
barco,
driblando o velho, como se diz hoje. E era aquele barco que balouçava no
mar alto da velha China, no fundo do prato.
Eu era curiosa para saber o final da estória. Mas o resto, por muito que
pedisse,
não contava minha bisavó. Dali para a frente a estória era omissa. Dizia
ela - que o resto não estava no prato nem constava do relato. Do
resto, ela não sabia. E dava o ponto final recomendado. “- Cuidado
com esse prato! É o último de 92.”
Devo dizer - esclarecendo, esses 92 não foram do meu tempo. Explicava
minha bisavó
que os outros - quebrados, sumidos, talvez roubados - traziam outros
recados, outras legendas, prebendas de um tal Confúcio e baladas de
um vate chamado Hipeng.
Do meu tempo só foi mesmo aquele último que, em raros dias de
cerimônia ou festas do Divino, figurava na mesa em grande pompa, carregado
de doces secos, variados,
muito finos, encimados por uma coroa alvacenta e macia de
cocadas-de-fita.
Às vezes, ia de empréstimo à casa da boa tia Nhorita. E era certo no
centro da mesa de aniversário, com sua montanha de empadas, bem
tostadas. No dia seguinte, voltava,
conduzido por um portador que era sempre o Abdênago, preto de valor, de
alta e mútua confiança.
Voltava com muito-obrigados e, melhor - cheinho de doces e salgados. Tornava
a relíquia para o relicário que no caso era um grande e velho armário, alto
e bem fechado. - “Cuidado com o prato azul-pombinho” - dizia minha
bisavó, cada vez que o punha de lado.
Um dia, por azar, sem se saber, sem se esperar, antes do
salta-caminho, partes do capeta,
fora de seu lugar, apareceu quebrado, feito em pedaços - sim senhor - o
prato azul-pombinho.
Foi um espanto. Um torvelinho. Exclamações. Histeria coletiva. Um
deus-nos-acuda. Um rebuliço. Quem foi, quem não foi?...
O pessoal da casa se assanhava. Cada qual jurava por si. Achava seus
bons álibis. Punia pelos outros. Se defendia com energia. Minha
bisavó teve “aquela coisa”. (Ela sempre tinha “aquela coisa” em casos
tais.) Sobreveio o flato. Arrotando alto, por fim, até chorou...
Eu (emocionada) vendo o pranto de minha bisavó, lembrando só da
princesinha Lui - que já tinha passado a viver no meu inconsciente como
ser presente, comecei a chorar - que chorona sempre fui.
Foi o bastante para ser apontada e acusada de ter quebrado o prato. Chorei
mais alto, na maior tristeza, comprometendo qualquer tentativa de defesa. De
nada valeu minha fraca negativa. Fez-se o levantamento de minha vida
pregressa de menina e a revisão de uns tantos processos arquivados. Tinha
já quebrado - em tempos alternados, três pratos, uma compoteira de
estimação, uma tigela, vários pires e a tampa de uma terrina.
Meus antecedentes, até, não eram muito bons. Com relação a coisas
quebradas nada me abonava. E o processo se fez, pois, à revelia da
ré, e com esta agravante: tinha colado no meu ser magricela, de
menina, vários vocativos adesivos, pejorativos: inzoneira,
buliçosa e malina.
Por indução e conclusão, era eu mesma que tinha quebrado o prato
azul-pombinho.
Reuniu-se o conselho de família e veio a condenação à moda do tempo: uma
boa tunda de chineladas.
Aí ponderou minha bisavó umas tantas atenuantes a meu favor. E o
castigo foi comutado
para outro, bem lembrado, que melhor servisse a todos de escarmento e de
lição:
trazer no pescoço por tempo indeterminado, amarrado de um cordão, um
caco do prato quebrado.
O dito, melhor feito. Logo se torceu no fuso um cordão de novelão. Encerado
foi. Amarrou-se a ele um caco, de bom jeito, em forma de meia-lua. E
a modo de colar, foi posto em seu lugar,
isto é, no meu pescoço. Ainda mais agravada a penalidade: proibição
de chegar na porta da rua. Era assim, antigamente.
Dizia-se aquele, um castigo atinente, de ótima procedência. Boa coerência. Exemplar
e de alta moral. Chorei sozinha minhas mágoas de criança. Depois me
acostumei com aquilo. No fim, até brincava com o caco pendurado. E
foi assim que guardei no armarinho da memória, bem guardado, e posso
contar aos meus leitores, direitinho, a estória, tão singela, do
prato azul-pombinho. "
CORA CORALINA
In Poema dos Becos de Goiás e Estórias Mais, 1965